sábado, 28 de novembro de 2009

Pela janela

Ele tinha um sorriso tão lindo, e ria como uma criança, contagiante, um pouco diferente. Fiquei boa parte da viajem de pé, somente olhando. Ele fazia alguns barulhos estranhos com a boca, a boca que também era um pouco diferente da minha. A mulher que lhe acompanhara pedia que ele fizesse silêncio, e por quase todo tempo passava a mão já enrugada sobre o cabelo preto e liso dele. Nem assim ele se calava. Na verdade, ele não falava. Tentei decifrar os gemidos, que não eram de dor, eram de qualquer outra coisa que sentia, mas eu não consegui entender. Seus olhinhos puxados, sem traços orientais, olhavam de um lado para o outro, fazendo gestos para os demais passageiros, menos para mim. Levantou algumas vezes, tinha uma pequena estatura (quase do meu tamanho) e todas às vezes a mulher o fez sentar. Já era seu ponto, ele e a tal mulher arrumavam suas coisas para descer, mas sua língua continuava a mostra, talvez não porque era muito grande, mas, porque sua boca era pequena demais para ela. Quando ele enfim levantou de vez e esbarrou em mim, derrubou minha apostila do curso. A mulher mandou que ele apanhasse imediatamente –num tom grave e alto- fui mais rápida, ele não era tão ágil quanto eu. Sorri para ambos como quem diz ‘’não foi nada’’ e eles desceram enfim. Logo vi que ela bateu com aquela mão enrugada na cabeça dele e falando algo ao mesmo tempo em que apertava seu braço esquerdo, me senti mal por não ter prestado atenção, e ter deixado a porcaria da apostilo cair.
Será que ela não enxerga como eu? O que o torna diferente de mim? Ser portador de síndrome de down? Sim (...)
No caminho sobre quatro rodas que nos levam, nos apresentam, e encenam ao vivo a vida com único tema: O Realismo. Onde encontro tanta coisa, tanta gente diferente, tantas lições, isso não aprendemos na escola. Fique atento(a) àqueles que seguem a mesma trajetória que você, olhe de lado um pouco, talvez alguém precise de ajuda, talvez você precise. Olhe pela janela do ônibus, que tão rápido passa e desenha as avenidas e as pessoas; eu vejo lixo; crianças puxando carroças com o triplo ou mais do peso que contem seu corpo magro; garotas a venda; rapazes guardando nos bolsos coisas que não lhes pertencem.
Eu vejo o Recife se acabando na mão/a custa dessa gente.
Tudo que você vê sobre duas pernas, é o mesmo que qualquer um pode enxergar, basta olhar um pouco pela janela.

6 comentários:

  1. Nossa. Muitas vezes passamos por esquinas sem notar por quem passamos, ou mesmo falamos com os vizinhos.
    No começo achei legal, não estava entendendo, mais ao ler todo o resto compreendir perfeitamente aonde você queria chegar narrando o acontecimento no ônibus.
    ''Pela janela... atrás das portas.. há muito mais do que podemos descrever'' rs

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  2. Olá vim dar uma visita pra ti!
    Acesse tbm www.sementedarenovacao.com

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  3. Muito bom!
    No início teve uma certa desconcertação dos fatos, mas ao decorrer do texto/poema passou uma imagem transparente e poética.

    Parabéns pelo blog!

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  4. Perfeito, custa-me muito observar tudo que está pela janela, ao redor, a passar... Falta-me muito altruismo...

    E nesse meu aspecto de egoismo, deixo de ver os desafios diversos que me cerca [nos cercam]...
    Procuraria adjetivos no dicionário para seu post, mas por preguiça os escrevo assim:

    Fabuloso, fantástio, apreciavel, poético, muito bem escrito, para ele diria, LINDO.
    Obrigado, por acrescentar mais em minha formação como pessoa, humano.

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  5. Pena que nem todos pensem como nós Maria Eduarda.
    As diferenças são barreiras entre as pessoas. Barreiras!!

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  6. Trissomia do cromossomo 21 - Síndrome de Down; excesso de amor.

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